Resenha do livro Introdução ao Espírito da litrugia
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção
Nome: Paulo Guimarães França RA00193914
Disciplina: Estágio Pastoral
Professor: Cônego José Bizon
Resenha:
“RATZINGER, Joseph Bento XVI. Introdução ao Espírito da liturgia. 4 ed. São Paulo: Loyola. 2015
No dia 16 de abril de 1927, um sábado de aleluia, nasceu o Cardeal Joseph Ratzinger, o Papa Bento XVI, na província de Marktl am Inn, diocese de Passau, na Alemanha. Educado no seio de uma família convencional descendente de camponeses, filho de um chefe de polícia e de uma antiga cozinheira, serviu o Exército alemão nos últimos meses da Segunda Guerra Mundial. Estudou, de 1946 a 1951, na Universidade de Munique, nos cursos de Filosofia e de Teologia. Em 1953, tornou-se doutor em Teologia, defendendo a tese intitulada “Povo e Casa de Deus na doutrina da Igreja de Santo Agostinho”. Quatro anos depois, foi autorizado a lecionar com a dissertação “A teologia da história em São Boaventura”, assistido pelo professor de teologia Gottlieb Söhngen.
Seu sacerdócio foi consagrado em 29 de junho de 1951 e, um ano mais tarde, ele iniciou seu trabalho como professor na Escola Superior de Freising. Como doutor, sempre enfatizou em suas aulas a questão dos dogmas e dos fundamentos da teologia.
Umas das primeiras leituras após o início dos estudos teológicos, no começo de 1946, foi a obra-prima de Romano Guardini o Espírito da liturgia, um pequeno livro publicado na Páscoa de 1918, o primeiro da coleção Ecclesia orans, organizada pelo abade Herwegen, com várias edições até 1957. Essa obra pode ser considerada, com justiça, o início do movimento litúrgico na Alemanha. Ela contribui substancialmente para que a liturgia, com sua beleza, a sua riqueza oculta e a sua grandeza que transcende o tempo, fosse redescoberta como centro vital da Igreja e da vida cristã. Esse livro contribuiu para que a liturgia fosse celebrada da maneira “essencial” ( termo predileto de Guardini); que fosse compreendida a partir de sua natureza e forma íntimas, como oração inspirada e conduzida pelo próprio Espírito Santo, em que Cristo continua a fazer-se nosso contemporâneo e a penetrar em nossa vida.
Contudo, foi preciso repensar o que Guardini elaborou no final da Primeira Guerra Mundial, em um contexto histórico completamente diferente, e aplicá-lo às problemáticas, as esperanças e aos perigos de nosso tempo. A exemplo de Guardini, também eu não pretendo desenvolver uma exposição ou conduzir uma pesquisa de tipo científico, mas oferecer uma ajuda para a compreensão da fé e uma correta prática de sua fundamental forma de expressão na liturgia. O livro se divide em quatro parte. E na primeira parte vem nos falar da essência da liturgia, ponto central. Três meses depois, porém, “da saída dos filhos de Israel da terra do Egito, naquele dia chegaram ao deserto do Sinai” (Ex 19,1). No terceiro dia, Deus desce no cume da montanha (19,16.20). Deus fala ao povo, manifesta a sua vontade nas dez santas palavras (20, 1-17), e sela com Moisés a aliança (Ex 24), que se concretiza numa forma de culto minuciosamente regulamentado. Desse modo, o escopo da peregrinação no deserto, anunciado ao faraó, se cumpriu: Israel aprende a adorar a Deus do modo desejado por Ele. E dessa adoração faz parte o culto, a liturgia em sentido restrito; mas esta exige viver segundo a vontade de Deus, que é uma parte imprescindível da verdadeira adoração, compreendendo exatamente aquilo que acontece no encontro na montanha no deserto: em suma, é a própria vida do ser humano, do homem que vive segundo a justiça, a verdadeira adoração a Deus; no entanto, a vida só se torna verdadeira vida se for moldada no olhar voltado para Deus. O culto serve justamente para isto: oferecer esse olhar e, assim, dar a vida, que se torna glória para Deus. Nas religiões do mundo o culto e o cosmo estão sempre intimamente ligados; a adoração dos deuses nunca é apenas um ato de socialização da comunidade interessada, que, através de ritos simbólicos, se tornaria consciente da própria recíproca pertença.
Na narração veterotestamentária da criação (Gn 1,1-2,4), essa visão é plenamente reconhecível e, ao mesmo tempo, transformada. A criação vai em direção ao sábado, para aquele dia no qual o homem e a criação inteira tomam parte no repouso de Deus, em sua liberdade. Fica claro então que, o sábado é o sinal da aliança entre Deus e o homem, o que sintetiza muito bem a essência da aliança. A resposta do ser humano a um Deus que é bom com ele chama-se “amor”, e amar a Deus significa adorá-lo. Se a criação é entendida como espaço da aliança, lugar do encontro com Deus e o ser humano, isso significa que é pensada também como lugar da adoração.
Podemos, então dizer que o objetivo do culto e o objetivo da criação em seu conjunto são o mesmo: a divinização, um mundo de liberdade e de amor. Desse modo, porém, até na dimensão “cósmica” aparece a dimensão histórica: o cosmos não é uma espécie de edifício fechado em si mesmo, nem um recipiente inerte no qual a história pode se desenvolver. Também ele está em movimento, de um ponto inicial rumo a uma meta. Ele mesmo é, de certo modo, história. O círculo cósmico e o histórico são agora distintos: o elemento histórico recebe o seu peculiar e definitivo significado do dom da liberdade, como centro do existir divino e daquele criado, mas não será, por isso, separado do cósmico. Apesar de sua diferença, ambos os círculos permanecem, em última análise, dentro do único círculo do existir: a liturgia histórica do cristianismo é e permanece, de modo inseparável e inconfundível, cósmica, e só assim ela subsiste em toda a sua grandeza. Há a novidade única da realidade cristã, todavia não repudia a pesquisa da história das religiões, mas acolhe em si todos os elementos importantes das religiões naturais, mantendo, assim, uma ligação com elas. Só Deus merece adoração, este é primeiro mandamento. Esse único Deus certamente era adorado com um sacrifico cuidadosamente regulado pelos minuciosos preceitos da Torá, mas, se observamos mais atentamente a história cultual de Israel, deparar-nos-emos com uma segunda característica que, acompanhada com coerência, no final nos conduzirá a Jesus Cristo, ao Novo Testamento. Exatamente a partir de uma leitura teológica do culto o Novo Testamento se situa em íntima relação com o Antigo Testamento. O Novo Testamento é a mediação interior, correspondente ao drama interior do Antigo Testamento, dos elementos inicialmente em luta entre si, que na figura de Jesus Cristo, em sua cruz e ressurreição, chegam à unidade.
O discurso inteiro de Estevão deriva da acusação que lhe foi feita de ter declarado: “Jesus de Nazaré destruirá este lugar [o Templo] e mudará os costumes que Moisés nos deixou”. Estevão responde apenas indiretamente a essa afirmação e põe em evidência a atitude crítica do Antigo Testamento relativa ao Templo e ao culto. Estevão deve ter provocado grande espanto nos presentes. Estevão não rebate aas alegações que lhe são contestadas; em vez disso, procura demonstrar porque elas são mais profundamente fiéis à mensagem do Antigo Testamento e à de Moisés. É importante destacar, em tudo isso, como a acusação dirigida ao primeiro mártir da história da Igreja é idêntica, desde a formulação, àquela que desempenha um papel central no processo contra Jesus. Jesus é acusado de ter dito: “Eu destruirei este templo feito por mão de homens, e em três dias construirei outro, sem auxílio de mão de homens” (Mc 14,58). Com a ressurreição inicia-se o novo templo; o corpo vivo de Jesus Cristo, que então estará na presença de Deus e será o lugar de todo culto. Nesse corpo ele abraça a todos os seres humanos; não é a tenda erigida por mãos humanas, é o lugar da verdadeira adoração a Deus que dissolve as trevas e as substitui pela realidade.
O novo templo já existe, e assim também o novo e definitivo sacrifício: a humanidade de Cristo manifestada em sua morte na cruz e ressurreição; a oração do homem Jesus é agora uma só coisa com diálogo intratrinitário do amor eterno. Mediante a Eucaristia Jesus introduz os seres humanos nessa oração, que é, então, a porta sempre aberta da adoração e o verdadeiro sacrifício, o sacrifício da nova aliança, o “culto espiritual” (Rm 12,1). Celebrar a Eucaristia significa, assim, entrar, na adoração do Deus que abraça o céu e a terra, que se abriu com a cruz e a ressurreição. A liturgia cristã nunca é a iniciativa de um determinado grupo, de um determinado círculo ou de uma determinada Igreja local. Se descreve a Eucaristia como “assembleia”, partindo do fenômeno litúrgico, ou como “ceia”, a partir do ato fundamental realizado na última Páscoa de Jesus. A liturgia cristã é a liturgia da promessa cumprida, do movimento de busca da história das religiões que atingiu a própria meta, mas que permanece liturgia da esperança. O grande gesto do abraço que vem do Crucificado ainda não atingiu o alvo, mas só começou. A liturgia cristã é liturgia a caminho, liturgia da peregrinação rumo à mudança do mundo, que acontecerá quando Deus for “tudo em nós”.Na segunda parte:O tempo e lugar na liturgia. " A comunidade cristã precisa de um lugar onde possa se reunir e definem, a partir daí a função do edifício Igreja em sentido não sacral, mas rigorosamente funcional: ele possibilita o encontro litúrgico. Esta é, indiscutivelmente, uma função essencial do edifício igreja, graças à qual ele difere da forma clássica do templo na grande maioria das religiões. O rito de expiação no Santo dos santos da antiga Aliança era celebrado somente pelo sumo sacerdote; ninguém, exceto ele, podia ali entrar, e ele próprio só entrava uma vez por anos. Do mesmo modo, também os templos de todas as outras religiões não costumavam ser lugares de reunião dos orantes, mas espaços cultuais reservados à divindade”.O “culto” é celebrado pelo próprio Cristo em seu estar perante o Pai, é Ele o culto dos seus quando eles se reúnem com Ele e em torno d’Ele. Essa diferença essencial entre o espaço da liturgia cristã e os “templos”, todavia, não pode ser estímulo para uma falsa oposição, na qual é interrompida a continuidade interna da história. É o culto que reúne os convocados, que dá dignidade e significado ao seu encontro, isto é, ao seu ser uma só coisa naquela “paz” que o mundo não pode dar. Isso está claro também no protótipo da ekklesia tanto no Antigo como no Novo Testamento: a comunidade do Sinai. Ela se reúne para escutar a palavra de Deus e para selá-la no evento sacrifical, para que se estabeleça o “pacto” entre Deus e o ser humano. A própria sinagoga, com efeito, se reportava ao templo. A sinagoga não era simplesmente um lugar de ensinamento, uma espécie da sala de ensino religioso, mas era focada na presença de Deus. Para os hebreus, porém, essa presença de Deus estava (e está) estreitamento ligada ao templo. A sinagoga, portanto, era caracterizada por dois pontos fundamentais. O primeiro era a” cátedra de Moisés”, da qual Jesus também fala no evangelho (Mt 23,2). O rabino nada diz de seu, nem mesmo é um professor que analisa e faz uma reflexão intelectual sobre a palavra de Deus; ele torna presente a palavra que Deus comunicou a Israel através de Moisés, e a comunica ainda hoje. Deus fala hoje através de Moisés. A cátedra de Moisés existe para que o Sinai não seja apenas experiência do passado, porque aqui não ocorre apenas um discurso humano, mas é Deus quem fala.
Se a sinagoga contém no escrínio da Torá uma espécie de arca da Aliança, exatamente por isso ela é o lugar de uma como que “presença real”, visto que nela se conservam os rolos da Torá, a palavra viva de Deus, por meio da qual ele habita em Israel no meio de seu povo.
Esse direcionamento para o templo e a consequente ligação da liturgia da palavra sinagogal com a liturgia sacrifical do templo se manifesta na forma da oração. As orações recitadas durante o desenvolvimento e a leitura do rolo da Torá provêm das orações rituais originalmente ligadas aos atos sacrificais do templo, que então, segundo a tradição da época em que o templo já não existia, podiam ser consideradas equivalentes ao próprio sacrifício.
Agora se olha para o Oriente, para o sol que nasce. Não se trata de um culto solar, mas é o cosmos que fala de Cristo. Com referência a Ele ora é interpretado o hino solar do Salmo 18(19), no qual se diz “[o sol] que sai como um esposo do seu tálamo, como um atleta exulta em seu percurso; onde começa o céu ele aparece, chega em sua corrida ao outro extremo” (vv.6s). Este salmo passa diretamente da celebração da criação para o louvor da lei. Na igreja antiga a oração voltada para o Oriente era considerada uma tradição apostólica. Rezar voltado para Oriente significa ir ao encontro do Cristo que vem. A liturgia voltada para Oriente opera, ao mesmo tempo, o ingresso no curso da história que caminha para o seu futuro, rumo ao novo céu e à nova terra que, em Cristo, vêm ao nosso encontro. Ela é a oração da esperança, é o rezar caminhando na direção que nos indicam a vida de Cristo, a sua paixão e a ressurreição. Desse modo o simbolismo da cruz e o simbolismo do Oriente se entrelaçam; ambos são expressão da mesma e única fé, na qual a memória da Páscoa de Jesus se faz presença e lhe confere a dinâmica da esperança que vai ao encontro d’Aquele que vem.
A segunda novidade relativa a sinagoga consiste no fato de que emergem um elemento completamente novo, que não podia existir na sinagoga: na parede oriental, ou seja, na abside, agora está o altar, sobre qual é celebrado o sacrifício eucarístico. Como vimo, a Eucaristia é um entrar na liturgia celeste, um torna-se contemporâneo do ato de adoração de Jesus Cristo em que Ele, por meio do seu corpo, assume em si o tempo do mundo e, ao mesmo tempo, o levanta acima do tempo, conduzindo-o até a comunhão no eterno amor. Se a sinagoga, além da arca santa e do escrínio da palavra se olhava para Jerusalém, agora o altar foi posto um novo centro de gravidade: nele, repetimos, volta a estar presente aquilo que antes era representado pelo templo. Ele serve antes para a nossa contemporaneidade com o sacrifício do logos. Podemos também afirmar que o altar é, por assim dizer, o lugar do céu aberto; ele não fecha o espaço eclesial, mas o abre para a liturgia eterna, é preciso terminar de trata das mudanças que atingiram a sinagoga a partir da essência da fé cristã. O terceiro elemento que convém observar a esse respeito é que a arca da Escritura foi conservada e manteve sua colocação no edifício eclesiástico, mas também aqui com uma novidade substancial. A Torá se soma os Evangelhos, os quais, por si sós, podem desvelar o sentido da Torá: “Foi sobre mim que Moisés escreveu” (Jo 5,46). A duplicidade dos lugares santos teve uma consequência importante para a práxis litúrgica: na liturgia da palavra a comunidade se reunia ao redor do escrínio dos livros sagrados, ou seja, em torno da cátedra a ele associada e que de cátedra de Moisés se tornou cátedra episcopal.
A liturgia eucarística se realiza com o olhar fixo em Jesus, é olhar voltado para Ele. A liturgia possui, portanto, na estrutura da Igreja cristã primitiva, dois lugares. O primeiro é o da liturgia da palavra, no centro do espaço, no qual os fiéis se reúnem ao redor do bema, uma espécie de tribuna sobre a qual ficava o trono do Evangelho, a cadeira episcopal e a estante de leitura. A autêntica liturgia eucarística tem seu lugar na abside, junto ao altar, que os fiéis rodeiam, todos voltado, juntamente com o celebrante, para o Oriente, para o Senhor que vem.
Finalmente, convém fazer referência a uma última diferença entre sinagoga e as igrejas das origens; em Israel, apenas a presença dos homens era considerada fundamental para a celebração do culto. Somente a eles se referia o sacerdócio universal descrito em Êxodo 19. Na sinagoga, as mulheres só podiam ocupar lugar nas tribunas ou nas galerias. Na Igreja de Cristo, já a partir dos Apóstolos, e do próprio Jesus, não existia essa distinção. Ainda que o serviço público da palavra não fosse confiado às mulheres, elas eram incluídas na celebração litúrgica, exatamente como os homens. Por isso, embora separadas dos homens, elas possuíam um lugar no espaço sagrado, ao redor do bema, bem como em torno do altar. As transformações da sinagoga até aqui descritas, com referência à liturgia cristã, permitam reconhecer com muita clareza a comunidade e a novidade na relação entre o Antigo e Novo Testamento, também do ponto de vista arquitetônico.
Enquanto na construção das igrejas bizantinas a estruturas ora descrita era substancialmente mantida, em Roma se desenvolvia uma disposição diferente. A cadeira episcopal foi deslocada para o centro da abside; consequentemente, também o altar foi conduzido para a nave central. Parece que na basílica Lateranense e em Santa Maria Maior as coisas permaneceram assim até século IX. Na basílica de São Pedro, porém, sob o pontificado de Gregório Magno (590-604), o altar foi colocado próximo à cadeira episcopal, provavelmente porque assim ficava em cima do túmulo de São Pedro. O costume de construir o altar sobre os túmulos dos mártires remonta a muito antes no tempo e exprime sempre o mesmo conceito: os mártires tornam presente o sacrifício de Cristo ao longo de todo o curso da história; eles são, por assim dizer, o altar vivo da Igreja, que não é feito de pedra, mas de pessoas que se tronaram membros do corpo de Cristo e que exprimem, assim, o novo culto: o sacrifício é a humanidade que com Cristo se transforma em amor. As investigações topográficas revelaram que a basílica de São Pedro olhava para o Oriente. Mas, se o sacerdote celebrante quisesse olhar para o Oriente, como exige a tradição litúrgica cristã, então tinha de se situar atrás do povo e, consequentemente, olharia para os fiéis. A renovação litúrgica de nosso século se reportou a essa presumível posição do celebrante, para desenvolver com base nela uma nova ideia de forma litúrgica: a Eucaristia deve ser celebrada versus populum(voltada para o povo); o altar, como se deduz pela representação de são Pedro, considerada normativa, deve estar disposto de maneira tal que o sacerdote e o povo possam se olhar mutuamente e assim constituir em seu conjunto o círculo dos celebrantes. Apenas essa forma corresponderia ao sentido da liturgia cristã, ao empenho da participação ativa. Somente assim se corresponderia, além disso, à imagem original da Última Ceia, fruto da renovação litúrgica operada pelo Concilio Vaticano II.
A essa análise da “forma do banquete” convém acrescentar, de todo modo, que a Eucaristia certamente não pode ser descrita exatamente pelo termo “refeição” ou “banquete”. O Senhor, com efeito, instituiu sem dúvida a novidade do culto cristão no âmbito de um banquete pascal judaico, mas ordenou que repetíssemos essa novidade, não o banquete como tal. Outra consequência é que a liturgia sinagogal da palavra foi renovada e aprofundada cristãmente, permeada pela memória da morte e ressurreição de Cristo, então, precisamente desse modo permaneceu fiel ao encargo do “fazei isto”, Essa nova imagem conjuntural não podia, enquanto tal, ser simplesmente extraída da “refeição”, mas do conjunto de templo e de sinagoga, de palavra e de sacramento, de dimensão cósmica e história.
Foi correto aproximar o altar do povo, geralmente muito distante dos fiéis, ainda que, nas catedrais, se podia retornar à tradição do altar do Crucificado, que ficava entre a passagem do altar-mor para a nave central. Também foi importante a voltar distinguir com clareza o lugar da liturgia da palavra em relação à liturgia eucarística propriamente dita, uma vez que aqui se trata efetivamente de um discurso e de uma resposta, e que, assim, faz sentido situar-se um diante do outro, quem anuncia e quem escuta.
Uma posterior objeção mostrou que não é necessário olhar para o Oriente e para a cruz, visto que quando o sacerdote e os fiéis se olham reciprocamente veem do homem a imagem de Deus; consequentemente, a correta orientação da oração é aquela na qual todos se voltam, reciprocamente, uns para os outros. O Senhor é o ponto de referência. É ele o sol nascente da história. Pode tratar-se tanto da cruz da paixão, que representa Jesus sofredor que deixa traspassar o seu lado por nós, do qual jorram sangue e água, a Eucaristia e o Batismo, como também de uma cruz triunfal, que exprime a ideia do retorno e atrai a atenção para Ele. Porque é Ele, assim, o único Senhor: Cristo ontem, hoje e eternamente (Hb 13,8).Na terceira parte arte e liturgia. “No primeiro mandamento do decálogo, que põe em evidência a unicidade de Deus, a quem cabe unicamente a adoração, lemos este preceito: “Não farás para ti imagem esculpida nem figura humana à semelhança do que há em cima no céu, nem do que há embaixo na terra, nem do que há nas águas embaixo da terra” (Ex 20,4; cf. Dt. 5,8). Existe, pois, uma notável exceção a essa proibição das imagens no coração do Antigo Testamento, no santo dos santos, no qual era mantido o propiciatório de ouro da arca da Aliança, considerado lugar de expiação. “Ali eu me encontrarei contigo”, disse Deus a Moisés (Ex 25,22).” Farás dois querubins de ouro, trabalhando-os em ouro batido e colocando-os nas duas extremidades dessa tampa. (...) Os querubins terão as duas asas abertas para cima... E estarão com as faces voltadas um para o outro, sem desprenderem os olhos do centro do propiciatório” (Ex 25,18-20). Os seres misteriosos, que cobrem e guardam o lugar da revelação de Deus, podem ser representados exatamente o mistério da presença de Deus”. pesquisas arqueológicas permitem verificar que as antigas sinagogas eram ricamente decoradas com representações de cenas bíblicas. Estas não eram simples imagens de eventos passados, uma espécie de ensinamento da história através das imagens, mas uma forma de narração que, reevocando a lembrança, atualiza uma presença (Haggada): nas festas litúrgicas os atos realizados por Deus são presença. As festas são participação da ação de Deus no tempo, e as imagens contribuem, por sua vez para a atualização litúrgica, exatamente como figura que se tornou memória. As imagens cristãs, da maneira como as encontramos nas catacumbas, retornam com simplicidade e em grande escala o cânone icônico criado pela sinagoga, porém lhe conferem uma nova modalidade de presença. Cada um dos eventos, então, é subordinado aos sacramentos cristãos e ao próprio Cristo. O ícone vem da oração e conduz á oração: ela liberta do fechamento dos sentidos, que percebe somente o exterior, a superfície material, e não nota a transparência do espírito, a transparência do Logos na realidade.
Somente quando se compreendeu essa direção interior do ícone se pode também entender, de modo correto, por que o segundo Concílio de Niceia e todos os sínodos posteriores que trataram dos ícones veem no ícone uma profissão de fé na Encarnação e consideram o iconoclasmo uma negação dela, como se fosse o somatório de todas as heresias. Encarnação significa, antes de tudo, que Deus, o invisível, entra no espaço do visível, a fim de que nós, que somos ligados ao material, possamos reconhecê-lo. Deus nos procura, lá onde estamos, mas não para que permaneçamos ali, e sim para que chequemos lá, onde Ele está, para que nos elevemos acima de nós mesmos. Por isso a redução da figura de Cristo a um “Jesus histórico” pertencente ao passado, se engana quanto ao sentido de sua figura, ignora o sentido da encarnação. Os sentidos não devem ser eliminados, mas alargados em sua possibilidade máxima. Somente vemos o Cristo quando exclamamos com Tomé: “Meus Senhor e meu Deus!”.
A representação do Cristo sofredor que morre na cruz é nova, porém ela continua a colocar diante de nós Aquele que carregou as nossas dores e as chagas pelas quais fomos curados. As imagens consolam porque tornam visível a superação das nossas tribulações na compaixão do Deus que se fez homem, e, desse modo, trazem em si a mensagem da ressurreição. Também essas imagens vêm da oração, vêm da meditação interior da via de Cristo; são identificações com Cristo, que se fundamentam no fato de que nele Deus se identificou conosco. O que foi aqui referenciado a partir da imagem da cruz vale também para a permanente arte “narrativa” do gótico. Que força de interiorização se vê nas imagens da Mãe de Deus! Nelas se manifesta a nova humanidade da fé. Imagens como essas convidam á oração, porque são interiormente marcadas pela prece. Não podemos esquecer, finalmente, a grandiosa arte dos vitrais góticos! As janelas das catedrais góticas detêm a luz ofuscante do exterior, a envolvem e deixam transparecer toda história de Deus com os homens, da criação até a sua volta.
O Renascimento certamente deu um passo à frente, em uma direção completamente nova. Ele “emancipa” o ser humano. O ser humano se experimenta em toda sua grandeza, em sua autonomia. A arte fala dessa grandeza do homem, e de fato surpreende; não precisa mais procurar outra beleza. Entre as representações dos mitos pagãos e as da história cristã, em geral se custa a captar alguma diferença.
A arte barroca, que sucedeu ao Renascimento, apresenta múltiplos aspectos e se realiza de diferentes maneiras. Em sua melhor forma, ela se fundamenta nos princípios da reforma iniciada pelo Concílio de Trento, que mais uma vez na linha da tradição ocidental, colocava em relevo o caráter didático-pedagógico da arte, porém, como princípio de uma renovação do interior, também conduzia a uma nova visão do interior para o exterior.
O Iluminismo conduzia a fé para uma espécie de gueto intelectual e social; a cultura contemporânea afastou-se dela e percorreu um outro caminho, de forma que a fé ou se refugiou no historicismo na imitação do passado, ou procurou adaptar-se, ou se perdeu no conformismo e na abstinência cultural, coisa que levou a um novo iconoclasmo, que, aliás, às vezes era visto como uma tarefa do Concílio Vaticano II.
A arte não pode ser produzida, assim como comercializam e produzem aparelhagens técnicas. Ela é sempre um dom. Não se pode decidir a inspiração, deve-se recebê-la gratuitamente. A renovação da arte na fé não será alcançada nem com dinheiro, nem com a comercialização. Pressupõe, em primeiro lugar, o dom de uma nova visão. Por isso, todos devemos preocupar-nos para atingir novamente uma fé capaz de ver. Onde isso acontece, também a arte encontra a sua correta expressão.Na quarta parte forma litúrgica.“Para muitas pessoas a palavra “rito” hoje não possui crédito. O “rito” aparece como algo rígido, um vínculo a formas prefixadas; a ele se opõem a criatividade e a dinâmica da inculturação: somente através destas haveria a liturgia viva, na qual cada comunidade pode exprimir a si mesma. O “rito”, pois, é para os cristãos a forma concreta, que supera os tempos e os espaços, nos quais comunitariamente se configurou o modelo fundamental da adoração que nos foi doado pela fé; por sua vez, essa adoração, como vimos na primeira parte, envolve sempre toda a práxis da vida. O rito possui, portanto, o seu lugar principal na liturgia, mas não somente nela. Ele também se exprime em um determinado modo de fazer teologia, na forma da vida espiritual e nas ordenações jurídicas da vida eclesial. É importante constatar como cada um dos ritos faz referência aos lugares de origem apostólica do cristianismo, procurando, assim, um contato direto no espaço e no tempo com evento da Revelação. Os ritos não são, portanto, somente produtos de inculturação, embora tenham assumido elementos de culturas diferentes. São figuras da tradição apostólica e do seu desenvolvimento nos grandes âmbitos tradicionais. Se, pois, nós perguntarmos, mais uma vez, o que é o rito na liturgia cristã, a resposta é: o rito é a expressão, tornada forma, da eclesialidade e da comunitariedade da oração e da ação litúrgica, que supera a história.O Concílio Vaticano II propôs como pensamento guia da celebração litúrgica a expressão participatioactuosa, participação ativa de todos no Opus Dei, no culto divino. A palavra “participação” remete, porém, a uma ação principal, na qual todos devem tomar parte. Se, pois, se quer descobrir de que agir se trata, é necessário, antes de tudo, verificar qual é essa “actio” central, na qual devem tomar parte todos os membros da comunidade. A verdadeira ação litúrgica, o verdadeiro ato litúrgico, é a oratio: a grande oração, que constitui o núcleo da celebração litúrgica e que, exatamente por isso, em seu conjunto, foi chamada pelos Padres de oratio. No início, a palavra oratio não significava oração ( por isso existia o termo prex), mas o discurso solene pronunciado em público, que então ostentava a sua mais alta dignidade pelo fato de dirigir-se a Deus, na consciência de que ele provinha do próprio Deus e por Ele era tornado possível.
A solene oração eucarística, o “cânon”, é realmente mais que um discurso, é actio no sentido mais alto do termo. Nela acontece, com efeito, que actio humana (assim como até então era praticada pelos sacerdotes nas diferentes religiões) passa para o segundo plano e abre espaço para a actio divina, para o agir de Deus. A verdadeira ação da liturgia, na qual todos devemos tomar parte, é ação de Deus. É essa a novidade e a particularidade da liturgia cristã: é o próprio Deus quem age e realiza o essencial.
A singularidade da liturgia eucarística consiste exatamente no fato de que é o próprio Deus quem age, e que nós somos atraídos para dentro desse agir de Deus. Em relação a esse fato, todo o resto é secundário. E deve ficar bem visível que a oratio é o que mais importa, que ela é importante exatamente porque abre espaço para a actio de Deus.
O envolvimento do corpo, do qual se trata na liturgia da palavra feita carne, se exprime na própria liturgia em certa disciplina do corpo, em gestos amadurecidos pela intenção interna da liturgia e que, de certo modo, manifestam visivelmente a sua natureza. Esses gestos, considerados individualmente, podem variar de acordo com os diferentes lugares e culturas, mas em sua forma essencial fazem parte da cultura da fé, da maneira como veio se formando a partir do culto; enquanto linguagem expressiva comum, eles superam os âmbitos culturais.
O gesto fundamental da oração do cristão é, e permanece, o sinal da cruz. É uma profissão, expressa por meio do corpo, da fé em Cristo Crucificado. O sinal da cruz é uma profissão de fé eu creio n’Aquele que sofreu por mim e ressuscitou; n’Aquele que transformou o sinal do escândalo em sinal de esperança e do amor pressente em Deus em nós. A profissão de fé é uma profissão de esperança: creio n’Aquele que em sua fraqueza é o Onipotente; n’Aquele que, exatamente na aparente ausência e extrema fraqueza, pode me salvar e me salvará. Ligamos o sinal da cruz com a profissão de fé em Deus Trindade, Pai, Filho e Espírito Santo. Ele se torna, assim, lembrança do batismo, de maneira ainda mais clara se for acompanhado com o uso da água benta. A cruz é um sinal da paixão, mas ao mesmo tempo é também sinal da ressureição; ela é, por assim dizer, o bastão da salvação que Deus no estende, a ponte pela qual transpomos o abismo da morte e todas ameaças do mal, e podemos, finalmente chegar até Ele.
Podemos dizer, pois, que no sinal da cruz, em sua invocação trinitária, se resume toda a essência do acontecimento cristão, nele está presente o traço distintivo do cristianismo. Abençoar é um gesto sacerdotal: naquele sinal da cruz percebíamos o sacerdócio dos pais, a sua particular dignidade e a sua força. Penso que esse gesto de abençoar, como plena e benévola expressão do sacerdócio universal de todos os batizados, deve voltar com força a fazer parte da vida cotidiana e impregná-la com a energia do amor que vem do Senhor.
Existem ambientes, notável influência, que procuram nos convencer de que não é necessário ajoelhar-nos. Dizem que esse gesto não se adapta à nossa cultura (mas, a qual, então?), que não convém ao ser humano maduro que vai ao encontro de Deus ereto, ou até, não condiz com o homem redimido, que por meio de Cristo se tornou uma pessoa livre e que, exatamente por isso, não precisa mais se ajoelhar.
O ato de ajoelhar-se não provém de uma cultura qualquer, mas da Bíblia e de sua experiência de Deus. A importância central que ajoelhar-se tem na Bíblia pode ser deduzida pelo fato de que só no Novo Testamento a palavra proskynein aparece 59 vezes, das quais 24 no Apocalipse, o livro da liturgia celeste, que seria apresentado pela Igreja como modelo e critério para a sua liturgia. A primeira é a prostratio: deitar-se no chão diante do poder predominante de Deus; em seguida, sobretudo no Novo Testamento, temos o cair aos pés, e, finalmente, ajoelhar-se.
Na liturgia da Igreja, a prostratio aparece, hoje, em duas ocasiões: na Sexta-Feira Santa e nas consagrações. Na Sexta-Feira Santa, dia da crucificação, ela é a expressão adequada de nosso arrasamento pelo fato de que, com os nossos pecados, somos corresponsáveis pela morte de Cristo na cruz. Prostramo-nos no chão e participamos de sua angústia, de sua descida ao abismo da carência. Enquanto os candidatos à ordenação jazem no chão, toda a comunidade reunida canta a ladainha de todos os santos.
Quem aprende a crer aprende a ajoelhar-se; uma fé ou uma liturgia que não conhecem mais o ato de ajoelhar-se estão doentes no ponto primordial. Lá onde esse gesto se perdeu, é preciso reaprendê-lo, para poder permanecer com a nossa oração em comunhão com os apóstolos e mártires com todo o cosmos, em unidade com Jesus Cristo.
COMENTÁRIOS SOBRE A RESENHA
Na primeira parte do livro sobre essência da liturgia.A vida só se torna verdadeira vida se for moldada no olhar voltado para Deus.
Na segunda parte do livro o tempo e lugar na liturgia. A comunidade cristã precisa de um lugar onde possa se reunir e definem, a partir daí a função do edifício Igreja em sentido não sacral, mas rigorosamente funcional: ele possibilita o encontro litúrgico
Na terceira parte do livro arte e liturgia. Os seres misteriosos, que cobrem e guardam o lugar da revelação de Deus, podem ser representados exatamente o mistério da presença de Deus”.
Na quarta parte do livro forma litúrgica. O rito possui, portanto, o seu lugar principal na liturgia, mas não somente nela. Ele também se exprime em um determinado modo de fazer teologia, na forma da vida espiritual e nas ordenações jurídicas da vida eclesial.
Bibliografia:
RATZINGER, Joseph Bento XVI. Introdução ao Espírito da liturgia. 4 ed. São Paulo: Loyola, 2015.