Resenha do livro A Eucaristia onde tudo se transforma
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção
Nome: Paulo Guimarães França RA00193914
Disciplina: Estágio Pastoral
Professor: Cônego José Bizon
Resenha:
“SALAMOLARD, Michel. A Eucaristia, onde tudo se transforma, falar da presença real hoje. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017”
Em 2004, publiquei pelas Éditions Saint-Augustin um livrinho intitulado La présence et le pain- Redécouvrir l” Eucharistie [A presença e o pão Redescobrir a Eucaristia]. Nesse ensaio, esforcei-me, com algum êxito, por aplicar, ao menos um pouco, o mistério estarrecedor da Eucaristia.
Desde então, meu fascínio por essa realidade central da vida cristã só aumentou. Novas perspectiva surgiram diante de mim. É próprio do mistério cristológico nos atrair cada vez mais a si, como no seio de uma noite profunda, onde uma simples fagulha não brilha senão para permitir que se desvele um real invisível, inapreensível, mas que ilumina tudo, que agarra nossa carne, que precipita nossas palavras, toda a nossa linguagem na joeira de um sentido sempre sacudido, maltratado, derrotado. Todos os nossos balbucios parecem ser apenas casaca a ser jogada fora, palha, poeira. Por fim, permanece em nossas mãos apenas este pão, com o eco de uma frase: “Este é meu corpo entregue por vós”.
Nós possuímos um tesouro inestimável: a Eucaristia, fonte, âmago e ápice da vida cristã. Uma teologia novamente centrada na Eucaristia, na cristologia, numa eclesiologia de comunhão, tudo enraizado numa teologia e numa ontologia trinitárias: eis o que poderia não somente renovar, mas sobretudo tornar convergentes, talvez um dia reunidas, nossas tradições cristãs lamentavelmente separadas. O autor, assim, pacientemente, põe a fé em palavras, numa atitude decididamente catequética, como que nos tomando pela mão, para estimular a reflexão e tentar explicar o inalcançável.
Ocapítulo I, intitulado “Com toda ingenuidade”.A presença de Deus ao mundo e no mundo, por nós, homens, e para nossa salvação, como diz o Credo Niceno-constantinopolitano, se expressou de maneira plena e insuperável pela presença de Cristo, pelo tornar-se homem do Filho de Deus, por sua vida e por sua morte. A ressurreição de Cristo arranca essa presença do fluxo passageiro da história, para alçá-la ao patamar de presença que envolve a totalidade do tempo e da história dos homens. “Eis que estou convosco todos os dias, até o fim do mundo” (Mt 28,20): tais foram as últimas palavras do Ressuscitado a seus amigos.
O que pode significar, em relação a essa presença “mais que real” do Ressuscitado, sua “presença real” na Eucaristia? Considera a Eucaristia como mistério e sua explicação como problema.É certo que Jesus estabeleceu uma relação entre Ele e o pão semelhante a nenhuma outra. É certo também que os cristãos sempre tiveram consciência dessa relação única entre o pão da Eucaristia e a presença, entre eles, de seu Senhor. Se a realidade da presença de Cristo na Eucaristia depende sobretudo dele, se ela se realiza como um dom gratuito em nosso universo e deve ser percebida por nós como tal, em sua realidade absoluta, então o pão e o vinho Da Eucaristia são realmente transformados, em seu ser mais profundo. Eles se tornam realmente, misteriosamente, corpo e sangue do Ressuscitado. Nossa fé acolhe essa realidade, mas não pode cria-la, em hipótese alguma.
No capítulo II, “Para uma ontologia da relação” A relação das criaturas com Deus está enraizada em Jesus Cristo, Alfa e Ômega: “nele foram criadas todas as coisas” (Cl 1,16). Nele a relação do criado com o Criador está igualmente ligada de modo indissolúvel, pela união da natureza humana (corporal, portanto, ligada ao universo material) e da natureza divina em sua pessoa. Nos dois primeiros capítulos do Gênesis, que situam o homem e a mulher em sua relação com Deus. Essa relação é fundamentalmente a mesma que a do universo com Deus: nós existimos porque Deus assim quis. Mas uma relação nova aparece sobre esse passo de fundo, que a Bíblia expressa em termos de imagem e semelhança (Gn1), ou pelas figuras da modelagem, do dom do sopro e do diálogo (Gn2).
Nossa alma é nossa relação com Deus, que nos quer e nos ama. É essa relação que funda nosso ser, dando-nos a possibilidade de subsistir de maneira realmente, mas também relativamente, autônoma. Relativo, aqui não limita real, mas constitui-lhe o princípio. Depender de Deus para existir e subsistir, e não apenas da natureza, constitui a mais sublime das elevações. É uma dependência que, longe de rebaixar, subjugar ou humilhar, levanta, liberta, diviniza.Pensar nossa alma como sendo nossa relação com Deus é rejeitar a ideia de que a alma é substancial? Certamente não, se admitirmos que a substância última de toda coisa, e sobretudo a do ser humano, é precisamente sua relação com Deus! Dissociar nossa substancialidade de nossa relação com deus redundaria em, simplesmente, seja negar Deus, seja negar Deus, seja fazer-nos deus sem Ele. Delimitemos mais uma vez que a palavra relação aqui não designa uma determinação acidental do ser humano, que subsistiria sem ou antes dessa relação, mas, ao contrário, o princípio último daquilo que ele é. Agora somos filhos de Deus, embora ainda não se haja manifestado o que havemos de ser. Quando Ele aparecer, seremos semelhantes a Ele, como diz São João (1Jo 3,2).
A relação radicalmente nova entre o homem e o universo, a capacidade do homem de certa forma casa-se com a natureza, em vista de uma fecundidade a nenhuma outra semelhante. Por conseguinte, podemos afirmar que a substância do pão e do vinho consiste em sua relação de origem com a ação conjunta do homem e da natureza. Fora dessa relação, pão e vinho não existiriam.
Entretanto, a natureza e o homem, eles próprios, não existem senão em virtude da causalidade divina: em Deus está a origem comum e imediata deles. Portanto, no fim das contas, é em sua relação com Deus que o pão e o vinho encontram seu fundamento ontológico. A liturgia expressa discretamente esse elo, situando o pão e o vindo como dons de Deus. O pão nosso de cada dia nos dai hoje: essa oração não espera de Deus uma intervenção milagrosa, mas reconhece que tudo vem dele: tanto a natureza nutridora quanto nossa capacidade de tirar dela o pão e vinho que serão partilhados.
A liturgia também coloca o pão e o vinho em relação com a realização que alcançarão na ação eucarística: Eles se tornarão para nós o pão da vida e o cálice da salvação. É um modo indireto de afirmar que eles se tornarão sacramentalmente o próprio Cristo, pois só Ele realiza, em sua pessoa, o que o pão e o vinho consagrados significam e dão.
Podemos concluir serenamente que, pela consagração e a ação do Espírito Santo, pão e vinho se tornam plenamente, além de toda espera e de toda imaginação, verdadeiro alimento. A transubstanciação é uma mudança radical dessa relação. Essa mudança não introduz nem um aniquilamento da substância do pão, nem sua alteração, o pão não se torna outra coisa, mas sua plena realização. Cristo não está encerrado no pão consagrado. O que une o pão a Cristo não é nenhuma das relações espaço temporais que podemos imaginar: interioridade, exterioridade, proximidade, concomitância, sucesso etc. Trata-se da relação de cumprimento escatológico, antecipada sacramentalmente.
A Eucaristia nos oferece essa presença de Cristo que se deu a nós ao se doar totalmente a seu Pai. Ele recebeu dele, em sua humanidade, o poder de nos comunicar a graças de sua filiação. Cristo realiza em sua morte e ressurreição tudo o que os sacrifícios da Primeira Aliança prefiguravam sem realizar, tudo o que os inúmeros sacrifícios de todas as religiões anunciavam sem saber: a vida e a morte absorvidas no amor, para a renovação da vida.
Deus criou o mundo não apensa livremente, mas também para também para sua honra e glória, como afirma o Concílio Vaticano I. Antes desse cânon, o mesmo Concílio havia definido que Deus cria não para aumentar sua beatitude, nem para adquirir sua perfeição, mas para manifestá-la. Em outras palavras, a glória de Deus se irradia em sua criação.
Se a criação do homem teve origem em semelhante colóquio divino, uma consequência incrível e perturbadora daí decorre. Incrível porque ultrapassa tudo o que podemos imaginar; perturbadora porque de natureza a despertar em nós um abalo da inteligência e do coração. A única coisa que podemos acrescentar a Deus que não somente manifesta sua glória, mas também a aumenta (cf.nota 90) de modo inimaginável é nosso pecado! A única coisa que o Verbo não podia assumir por sua encarnação é o pecado. Aí está algo que vem só do homem e que o Crucificado tomou não em si, mas sobre si, por nós, a fim de que o amor de Deus, em sua liberdade suprema, chegue a esse extremo (cf. Jo 13,1), que Deus não podia conhecer em si mesmo! Assim se realiza o projeto que meu colóquio ingênuo tentou evocar!
As palavras da consagração eucarística confirmam incessantemente:” Isto é meu corpo que será entregue por vós. Este é o cálice do meu sangue, que será derramado por vós e por todos, para a remissão dos pecados”. O corpo e o sangue de Cristo, sacramentalmente dados na Eucaristia, nos comunicam o amor divino em seu extremo, “para a glória de Deus e a salvação do mundo”.
Em relação à Eucaristia, falamos da presença real de Cristo. A palavra presença indica claramente uma relação, que agora se deve determinar. Aquele que se torna presente n Eucaristia, de maneira especial, não se contenta em vir, mas vem para se doar: Ele está presente (está “ai”) enquanto presente (dom). Diferenciemos três modos de presença:
O primeiro modo é o da proximidade física, no espaço ou no tempo. No espaço trata-se de uma simples vizinhança, como a de um bairro, ou dentro do elevador. No tempo, a contemporaneidade que dividimos com bilhões de pessoas, cuja imensa maioria não conhecemos, não é insignificante quanto as influências, ainda que tênues e diluídas, que exercemos uns sobre os outros.
Um segundo modo de presença é o da ação exercida por um ser sobre outro, amiúde com reciprocidade. Deixemos de lado aqui as ações físicas ou químicas, onipresentes, para nos concentrar sobre as ações próprias às pessoas. Essas ações e interações religam as pessoas de maneira espiritual, antes de tudo pela palavra. Por fim, o terceiro modo de presença se refere à imanência íntima do amor.
Quando se trata da aliança do amor entre Deus e o homem, a assimetria é radical, por causa do abismo da transcendência, aberto entre a criatura e o Criador, de um lado, e da desproporção entre o amor humano e o amor divino, de outro. O amor divino não apenas supera esse abismo, mas também aquele que o pecado do homem aprofunda ainda mais. O homem jamais oferece a Deus senão aquilo que recebe de Deus. E quando o oferece, é sempre Ele próprio que se enriquece: seu reconhecimento o projeta no coração de Deus, como um filho que, depois de receber um presente, se lança nos braços do pai ou da mãe para exultar de alegria.
A ascensão do Senhor, em outras palavras, sua última manifestação aos discípulos após a ressurreição, não é uma partida. Cristo não se ausenta, mas enche o universo com uma presença nova: “E eis que estou convosco todos os dias, até o fim do mundo”, foram as últimas palavras do Ressuscitado, segundo São Mateus (28,20). A presença real de Cristo na Eucaristia, estamos diante de um mistério fascinante, ao mesmo tempo, de natureza a frustrar nossos esforços para compreendê-lo.
Santo Tomás viu bem isso. Para ele, Cristo está presente na Eucaristia não de maneira local, mas sacramental: trata-se de um modo de presença, próprio a esse sacramento. Em contrapartida, para ele a presença corpórea do Cristo glorificado se encontra, em total e plena verdade no céu.
Consideremos três modalidades da presença, para nós, do Ressuscitado em seu corpo glorificado. A primeira, sem dúvida a mais fundamental e a mais abrangente, a mais intensa, é a de seu corpo eclesial. Pelo batismo, nosso ser está unido ao de Cristo (Rm 6,5). Uma segunda presença de Cristo é intermediada pelo corpo de nosso próximo, sobretudo quando está com fome, encarcerado, doente, quando é estrangeiro (Mt 25,31-46). Uma terceira presença de Cristo é a de seu corpo eucarístico. Para alcançar sua finalidade, a união de imanência conosco, ela se realiza em dois momentos. Na celebração da missa, primeiramente ela está diante de nós, objetivada de algum modo: nós a contemplamos e adoramos depois de o padre pronunciar as palavras do memorial: “isto é meu corpo, entrega por vós, o sangue da nova e eterna Aliança, derramado por vós e por todos”. Em seguida, ela entra em nós pela comunhão sacramental. Com seu corpo eucarístico, pão e vinho consagrados, a identificação do Ressuscitado é total, mas sacramental. A presença do Ressuscitado em seu corpo eclesial ultrapassa também o alcance de nossos sentidos e de nosso intelecto, mas aprendemos pela caridade, na medida em que dela vivemos no seio da Igreja, penetrando as realidades demasiado humanas dessa organização. A presença do Ressuscitado no próximo, pobre, só nos é acessível à medida que entramos em contato com o invisível dessa pessoa, ou seja, sua relação com Deus, com Cristo, o que designamos como sua alma. A presença eucarística do Senhor não é alcançada senão pela fé suspensa à palavra de Cristo compreendida na escuta eclesial. A presença eucarística constrói também, no hoje permanente da história, o corpo eclesial de Cristo neste mundo e para esse mundo, mistério dado a nossa fé.
No capítulo III, “O selo trinitário”. A Igreja é, antes de tudo, “ícone da Trindade”; ela reflete o mistério trinitário de Deus, reunindo em um a multiplicidade de seus membros. Essa é também a grande perspectiva encontrada e aprofundada pelo Vaticano II da Igreja comunhão (Constituição dogmática Lumen Gentium sobre a Igreja). Expressar essa comunhão cada vez melhor, na prática, é tarefa permanente, que a graça divina, o Espírito Santo, torna ao mesmo tempo possível e necessária.
No capítulo IV, “O evento pascal”.Se a Eucaristia atualiza o evento da cruz, a presença do Ressuscitado e o dom do Espírito Santo, é evidente que a Ceia, a última refeição de Jesus com seus amigos antes de sua prisão e de sua paixão, não podia ser uma Eucaristia, mas uma antecipação simbólica, em sentido forte, dos eventos pascais que ainda estavam por vir.
A frase “Isto é meu corpo”, proferida por Jesus durante essa refeição, não significa uma mudança do pão e do vinho dessa refeição comparável àquela que se realiza em nossas Eucaristias. A verdade dessas palavras, contudo, é total, no sentido de que elas anunciam o que vai se cumprir realmente, a saber, o dom perfeito de Cristo fará de si mesmo sobre a cruz.
A primeira Eucaristia ou fração do pão, segundo uma expressão corrente do Novo Testamento, é celebrada pelo próprio Jesus, em Emaús (Lc 24, 13-35). Ali também a presença de Jesus não se duplica: no momento em que é reconhecido ao partir o pão, Ele desaparece aos olhos dos dois discípulos.
Na Ceia, Jesus faz os discípulos compreenderem que todo o seu ser se resume, de certo modo, a isto: Ele é aquele que se dá totalmente, como um alimento, a fim de que os homens tenham a vida, não somente a vida terrena, mas sobretudo a vida em aliança com Deus, a vida em plenitude, a vida imortal.
Na vida de Jesus, as refeições são momentos máximos de encontro e salvação, de comunhão e reconciliação. Para grande escândalo dos fariseus! A seus olhos, ao participar da mesa dos pecadores, o que eles mesmos evitavam muito bem, Jesus demonstra ou não ser o justo que as pessoas acham que Ele seja, ou fazer-se cúmplice dos pecadores, ou sujar-se ao contato deles. “Os fariseus e escribas murmuravam dizendo: “Este homem acolhe gente de má fama e come com eles!”(Lc 15,2). Para Jesus, ao contrário, essas refeições manifestam o amor de um Deus que quer encontrar os pecadores, perdoar-lhes, acolhê-los em sua aliança, fazê-los passar da morte à vida.
A Ceia, última refeição de comunhão, recapitula assim todas as refeições de aliança de Jesus. Ela reassume todas as experiências de presença, de relação, de comunhão vividas pelo Galileu no curso de sua existência, para leva-las a um ponto culminante de intensidade e a uma extensão universal, pois a refeição eucarística instituída nessa noite deve ser reproduzida no seio da comunidade cristã, através de sua história.
Na Bíblia, as relações entre Deus e os homens são descritas em termos de aliança. Esta última pode assumir diferentes formas, mas é sempre Deus o iniciador, o garantidor e o realizador principal dela. Toda aliança comporta, porém, compromissos recíprocos, mas aquele que compete ao homem é sempre uma resposta à iniciativa divina.
Uma aliança primordial é selada unilateralmente por Deus, para sempre, com aqueles que se salvaram do dilúvio, em outras palavras com toda a humanidade, representada por Noé e sua família, e com todos os viventes. Mas ei que Deus “entra na história” pelo chamado a Abraão (Gn 12,1-4). Este torna uma benção destinada a se comunicar a todos:
Farei de ti um grande povo e te abençoarei [...].
Abençoarei os que te abençoarem,
E amaldiçoarei os que te amaldiçoarem.
Com teu nome serão abençoadas todas as famílias da terra.
Com Moisés e os eventos do Êxodo, a aliança adquire a forma de um pacto privilegiado entre Deus e um pequeno povo, Israel, escolhido para dar testemunho da salvação no meio (e em favor) de todas as nações.
O Profeta Jeremias anunciará claramente uma nova aliança, pela qual Deus escreverá sua Lei não sobre tabuas de pedra, mas nos corações:
Eis que virão dias, oráculo do Senhor, em que selarei
Com a casa de Israel e a casa de Judá uma aliança nova.
Não como a aliança que selei com seus pais no dia em
Que os tomei pela mão para fazê-los sair do Egito, aliança
que eles mesmos romperam. [...] esta é a aliança que
selarei com a casa de Israel: colocarei minha lei em seu
seio e a escreverei em seu coração. Então eu serei seu
Deus e eles serão o meu povo (Jr 31,31-33).
O Profeta Ezequiel retomará a mesma ideia, de modo a aprofundá-la: o coração do homem não é mais somente investido pela palavra que Deus ali inscreva, mas também é recriado:
Dar-vos-ei um coração novo e incutirei um espírito
Novo dentro de vós. Removerei de vosso corpo o coração
de pedra e vos darei um coração de carne. Incutirei
o meu espírito dentro de vós (Ez 36, 26-27)
É exatamente isso que o judeu piedoso pede em sua oração: “O Deus, cria em mim um coração puro” (Sl 51(50),12).
Concebido do Espírito Santo, nascido da Virgem Maria, Jesus une em sua pessoa o humano e o divino. Ele é a Aliança. Nele, desde sua concepção, a comunhão é total entre a divindade e a humanidade. A existência toda de Jesus, cada palavra sua, cada gesto seu, cada pensamento emana daquilo que Ele é: comunhão entre o divino e o humano. Seu agir reflete seu ser. Rosto humano de Deus, Jesus também é o rosto do homem divinizado. O amor e o agir de Deus se expressam por seu ser-humano. Jesus vive em comunhão perfeita com os homens. Ele é Irmão por ser Filho. O Pai é a fonte eterna desta única e dupla comunhão. O Espírito é essa própria comunhão.
Como Jesus viveu e manifestou concretamente a única e dupla comunhão, com seu Pai e conosco? Precisaríamos fazer um comentário completo dos evangelhos para responder a essa questão! Contentemo-nos aqui com fragmentos de significado.
Dois acontecimentos extraordinários relatados pelos três sinóticos, batismo e transfiguração de Jesus, constituem ápices de revelação, visão mística e voz misteriosa, da intimidade entre o Pai e o Filho no Espírito Santo. Em João, a mesma realidade se expressa em palavras explícitas de Jesus: “Eu e o Pai somos um” (Jo 10,30); “O Pai está em mim e eu estou no Pai” (10,38; 14,10-11), “Quem me viu a mim, viu o Pai” (14,9).
Se a comunhão de Jesus com seu Pai não se manifesta senão para convidar os homens a também nela entrar, a comunhão que Jesus selou entre os homens tem sua fonte na comunhão trinitária. Se quiséssemos resumir todo o ensinamento de Jesus, certamente diríamos que Ele lança uma luz nova e decisiva sobre as relações dos homens com Deus e as relações dos homens entre si. Essa luz é a de um amor incomparável, que une Jesus a seu Pai, mas também o Pai e Jesus a todos os homens, um amor que estes últimos são convidados a viver entre si. A palavra de Cristo é reveladora e criadora de uma comunhão entre os homens fundada sobre a comunhão deles com Deus, fonte infinitamente generosa de comunhão.
Entre os atos e os momentos de comunhão, as refeições ocupam um ligar proeminente, como se salientou, sobretudo as refeições de amizade com os pecadores. Os grandes milagres (multiplicação) dos pães, relatados cuidadosamente pelos evangelistas, nada mais são do que grandes festins em que multidões se nutrem não apenas de pão, mas também da presença e da palavra de Jesus, descobrindo ao mesmo tempo uma maneira nova de estar junto. Esses grandes sinais anunciam, eles também, uma Igreja de partilha e de Eucaristia, comunhão viva com o Cristo e com os outros, ela própria antecipando e preparando a comunhão definitiva da humanidade reunida no céu de Deus. Jesus é todo amor, por conseguinte, a experiência que Ele faz do pecado dos homens, de seu não amor, só faz nascer nele um amor maior do que todo negativo que o contradiz. A implicação exata disso é que Ele entra em contato direto, íntimo, com o mal e o pecado, os quais o afetam e ferem; que Ele integra em seu amor e em sua pessoa o negativo humano, a fim de desintegrá-lo, de certo modo, submergindo-o no positivo divino.
Para realizar uma comunhão nova e plena ente Deus e os homens, o Filho de Deus, Jesus, deverá inevitavelmente realizar também a expiação. E o fará da única maneira verdadeiramente eficaz: encontrando e padecendo o mal, sendo ferido pelo negativo, até a morte, respondendo a isso com um amor maior. O sofrimento de Jesus consiste em ser rejeitado por aqueles e aquelas que Ele ama. Tal sofrimento devemos insistir, evidentemente não vem de Deus, que o desejaria para satisfazer sua justiça: atribuir a Deus tão lamentável justiça, de mesmo “peso” que a nossa, é desprezar seu amor. Ele é então diretamente tocado e ferido por nossa indiferença e falta de amor. É o que toda a vida de Jesus, inclusive sua morte, nos mostra. O que lhe acontece pelo pecado dos homens é exatamente o que acontece a Deus, ao Filho de Deus, desde toda a eternidade, e que implica evidentemente um profundo e misterioso sofrimento do Pai, ambos unidos no Espírito Santo, este que é o comum amor, a comum ferida de amor do Pai e do Filho, e para nós fonte de toda graça.
O que contradiz nosso desejo de comunhão são o pecado e a morte. O primeiro impede ou fere a comunhão em seu desenvolvimento histórico. O segundo põe fim a toda comunhão concreta e histórica. Para cumprir de modo eficaz sua missão, estabelecer uma comunhão plena e verdadeira entre os homens, Jesus deverá, portanto, inevitavelmente enfrentar e superar o pecado e a morte. Por qual meio? Só o amor pode realizar esse milagre, um amor maior que o pecado e a morte. O amor é o único caminho que conduz à comunhão de amor.
A morte de Cristo na cruz realiza uma expiação totalmente nova e a única eficaz. O sofrimento que se abate sobre Ele é a violência nua do pecado dos homens. Não se trata de uma pena para resgatar uma falta, sendo a própria falta, todas as faltas em seu paroxismo, que vêm à tona para golpear o Inocente. Essa expiação, fruto unicamente do amor divino, consiste numa solidariedade total de Jesus com os pecadores enquanto pecadores. Para romper a força do pecado, era preciso que o pecado encontrasse diretamente o amor divino, rejeitando esse amor, enquanto o amor recolhia em si mesmo essa recusa.
No drama da cruz, é essencial distinguir bem duas realidades. A primeira, evidente para todos, é o evento histórico situado há aproximadamente dois mil anos e descrito pelos evangelhos. A segunda realidade, evidente apenas par a fé, é o acontecimento que transcende a história, o acontecimento divino, que irradia a história inteira, de sua origem a seu desfecho último. O amor do Crucificado ressuscitado, pois o amor não pode se impor.
Aqueles e aquelas que creem firmemente em Jesus Cristo, Filho de Deus, Salvador, também respondem ao amor divino quando amam o próximo. Mas fazem isso com os olhos e o coração grudados em Cristo! Comungam conscientemente no mistério pascal, num imenso louvor e reconhecimento. Encontram no coração de Jesus a força para amar como Ele. Agindo assim, os cristãos são as testemunhas vivas da salvação junto a seus irmãos, contribuindo conscientemente para a realização do projeto de Deus.
Ao celebrar a Eucaristia, comungamos de duas maneiras principais no mistério pascal. E o fazemos, primeiramente, pela escuta de fé da Palavra de Deus.
No capítulo V, “A mudança eucarística”. Pão e vinho significam aquilo que fornecem: a vida e a alegria. Há algo nosso e algo de Deus nesses elementos, e algo a mais nos sobrevém quando os comemos e bebemos: a vida e a alegria em comunhão. Partilhar o mesmo pão, e beber do mesmo cálice de vinho significam uma realidade invisível: a relação vital e venturosa entre os convivas, assim como entre eles e Deus”. O ser em quem mais se concentra, e do modo mais admirável, a sacramentalidade do mundo é o homem. Nele, o visível e o invisível forma unidade.Essa consagração do mundo, como a nossa, aliás, é objeto de esperança e de fé, não de clara visão, muito menos imaginação. Ela germina, poderíamos dizer, na transformação do pão e do vinho da Eucaristia. Se a palavra “Isto é meu corpo” for apenas um modo de falar, se não diz a verdade, no sentido mais estrito da palavra, que valor tem a palavra que nos promete novo céu e nova terra? Se o pão e o vinho não são realmente apreendidos pelo Cristo, retirados por Ele de sua condição ordinária, como poderíamos crer no imenso trabalho de parto que eleva desde agora a criação para introduzi-la na glória de Deus? (cf. Rm 8,18-25). Nossa própria transformação no Cristo, nossa união a Ele também é invisível, objeto de fé, assim como a transformação do pão e do vinho. A consagração, portanto, é uma transposição do objeto na esfera de existência do sujeito.
No capítulo VI, “Quando dizer é consagrar”. A consagração, portanto uma transposição invisível, mas real, com repercussões ontológicas mais ou menos profundas. Estas serão limitadas se o agente for humano; serão, porém, criadoras e onipotentes se ele for divino.
A consagração, lembremo-lo, é realizada pela intenção verdadeira de uma pessoa, reconhecida, reconhecida pela atenção de outra, no seio de uma relação de aliança.A analogia com a Eucaristia como signo consiste precisamente no fato de que nada muda na realidade física do sinal. O pão e o vinho consagrados conservam todas as suas propriedades físicas e químicas.
Para dar um passo adiante e chegar a uma nova etapa de compreensão da Eucaristia, cabe-nos considerar a natureza particular do pão e do vinho, alimento e bebida.
Como exemplo precedente, deixamos de lado o status específico do pão e do vinho, alimentos indispensáveis à vida e, portanto, ao pertencimento na comunidade humana dos vivos. Trata-se agora de levar em consideração a natureza particular desses alimentos. Comecemos por uma experiência vivida.
Por sua origem, “fruto da terra e do trabalho humano”, o pão é dom da natureza e da comunidade humana, ao mesmo tempo. Por sua afinidade, ele está destinado a “se realizar” sendo comido por nós, tornando-se assim energia que nutre a vida. Esta não é, tratando-se de pessoas, de simples sobrevivência individual, mas pertencimento a uma comunidade, qual seja, a dos homens.
Em Cristo e o pão, podemos identificar uma relação que precede a mudança eucarística e na qual está se inscreve logicamente, pela lógica divina! Que Cristo tenha escolhido o pão, a fim de se dar a nós, não é, portanto, segundo essa lógica, de surpreender por si só. O que é de causar grande admiração é que, no Cristo, Deus queira se dar realmente a nós! Tornando-se corpo de Cristo, pela transposição eucarística, o pão consagrado é este verdadeiro alimento prometido pelo Verbo encarnado, ou seja, Ele mesmo.Se admitirmos certa relação do pão com Cristo, anterior à consagração, e se afirmarmos também uma relação de identificação sacramental desse mesmo pão com Cristo, posterior a ela, é evidente que a consagração operou, pela ação conjunta do Espírito e da Igreja, uma mudança radical de relação entre o pão e Cristo.
COMENTÁRIOS SOBRE A RESENHA
No capítulo I, a presença do Ressuscitado na Eucaristia, considerar a Eucaristia como mistério.
No capítulo II, uma ontologia da relação deveria honrar duas tarefas. A primeira delas seria situar o conjunto do real e todos os entes em suas relações constitutivas, de um ponto vista metafisico. A segunda diz respeito à necessidade de se considerar a temporalidade, o devir, como uma dimensão estruturante do real.
No capítulo III, uma reflexão cristã decididamente fundada sobre o mistério da Santíssima Trindade, tanto na tradição oriental como na tradição latina.
No capítulo IV, o amor do Crucificado ressuscitado certamente nos alcança a todos, mas como um dom ofertado, pois o amor não pode se impor.
No capítulo V, a verdade sobre a Eucaristia exige uma transformação real do pão e do vinho na pessoa do Ressuscitado.
No capítulo VI, aquilo que hóstia significa não está fora dela, mas nela.
Bibliografia:
SALAMOLARD, Michel. A Eucaristia, onde tudo se transforma, falar da presença real hoje, Rio de Janeiro: Vozes, 2017.